Relatos do cotidiano de mulheres durante a pandemia de coronavírus

Esta página foi criada a partir dos encontros do projeto Conversa de Mulher, que ocorrem mensalmente no espaço da Livraria & Editora FiloCzar, na periferia da zona sul paulistana. Nestes encontros trocamos ideias sobre o cotidiano feminino e pensamos juntas em formas para enfrentarmos nossos problemas. Devido à pandemia de coronavírus, decidimos adaptar nossos encontros para o formato on-line. No encontro do dia 04 de abril de 2020, conversamos sobre formas de ampliarmos nossas trocas, e decidimos abrir esta página para reunir relatos de mulheres sobre seu cotidiano durante a pandemia. Os textos podem ter o formato que a autora desejar: diário, ensaio, poema, relato, etc. Se você é mulher e quer participar, envie seu texto ou peça para participar do grupo on-line pelo e-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo. ou entre em contato pelo whatsapp (11) 97045-3499. Os poemas serão publicados em E a poesia transbordou...

 

Brincadeira literária - Mônica Soares - 03 de junho de 2020

 

As redes sociais são uma fábrica de distrações. A última que tive contato foi em forma de brincadeira literária, e consistia em publicar capas de livros de sua preferência. O número de indicações era limitado em sete e não poderia mencionar nada sobre os livros: apenas a imagem. Triste desafio para quem adora conversar sobre os livros, falar sobre as características das personagens e até mesmo dar e receber spoilers - mas somente em situações previamente autorizadas! Como poderia ficar sem falar das leituras que tanto gosto? Como conter toda a empolgação ao narrar minimamente a sinopse de um livro ou explicar que é impossível não torcer pela personagem de tal história? Como não compartilhar o brilho nos olhos ao lembrar de um clássico que me tocou a alma? De fato seria um desafio. Mas os muros para um leitor nunca são tão altos e, seguindo os passos de Max, um judeu que ficou escondido no porão de uma Menina que roubava livros, vou dar um jeito de escrever o que me transborda o peito. Só não vou desenhar, porque essa habilidade eu não tenho!

A tarefa inicial: separar os livros! Tarefa fácil se fosse uma lista de 100 livros em vez de 7. Quero todos, pode? A cada livro que eu pegava era um momento, um cheiro, uma pessoa, uma linha de ônibus, um contexto de vida, um dia frio, um bom lugar, um Djavan. Viajei... mas vamos aos livros.

O primeiro livro que habita todas as minhas listas é A Insustentável leveza do Ser, de Milan Kundera. Que delícia de nome, que delícia de história! Amo esse livro e não consigo explicar porque o amo. Dramático, inquietante, estranho e filosófico. Esse livro me mostrou o quanto somos socialmente pequenos, mas imensos enquanto seres humanos. O quanto somos complexos e vastos. Foi indicação de uma amiga, empréstimo, logo em seguida comprei o meu. Não queria apenas possuir a história, queria abraçar o livro. Eu não conseguia dormir sem ler uma página que fosse. Esse livro me conduziu a profundas reflexões.

Segundo livro, A Mulher desiludida, de Simone de Beauvoir. Essa mulher dispensa apresentações e o livro é maravilhoso. Apesar das diferenças de época continua atual. São três contos que narram os medos, a desesperança e a condição da mulher na sociedade. Quando li esse livro estava despedaçada. As mulheres dos contos também estavam e de certa forma isso ajudou a me reconstruir. Eu me vi naqueles contos e arrisco a dizer que aquelas mulheres se viram em mim. É a magia da leitura.

Terceiro livro, Frankenstein, de Mary Shelley. Outra mulher que dispensa apresentações. Mary Shelley foi uma mulher à frente de seu tempo. A primeira edição de Frankenstein foi lançada em janeiro de 1818, são 200 anos e ainda nos fascina. Apaixonada pela criatura, sofri ao seu lado na maior parte do tempo. Apesar de ser considerado um monstro, ele é sensível e lida com as mais fundamentais questões humanas. Foi interessante acompanhar essa criatura que, abandonada pelo seu criador, desperta para sua triste condição e poder entender suas revoltadas, seus anseios, seus medos.

Quarto livro, As cem melhores crônicas brasileiras, vários autores. Esse aqui eu considero um golpe que estou dando, pois será cem em um! Temos Machado de Assis, Lima Barreto, Olavo Bilac, Rubem Braga, Vinícius de Moraes, Oswaldo de Andrade, Alcântara Machado, Rachel de Queiroz, Mario de Andrade, Humberto de Campos, Graciliano Ramos, Carlos Drummond de Andrade, Stanislaw Ponte Preta, Millôr Fernandes e outros pesos-pesados da nossa literatura. As crônicas são apresentadas por anos, começando em 1850. Dessa forma o leitor pode perceber as mudanças nas formas de narrativas como também as mudanças dos contextos sociais. Ganhei de presente de um tio também filósofo. Ler esse livro foi o mesmo que consumir pedaços de felicidades, ainda é uma doce recordação. Crônica sempre foi um dos meu estilos prediletos. Esse livro me acompanhou por muitos anos, ali na bolsa, guardadinho. Gostava de abri-lo e lê-lo ao acaso. A transição da escrita sempre me trouxe um certo conforto que, apesar dos pesares, tudo passa.

Quinto livro, O Estrangeiro, de Albert Camus. Sempre que lembro desse livro paro por alguns segundos e sinto um estranhamento. O relato é em primeira pessoa sobre a vida de M. Mersault, um homem que vive sua vida de forma livre, mas sem a consciência dessa liberdade. A personagem não se afeta com os acontecimentos em sua vida e não vive uma vida de acordo com as normas sociais, mas como deseja viver. A. Camus aborda a questão do significado que a sociedade tenta atribuir à existência. Quem nunca se perguntou: qual o sentido da vida? Será que tem? Li esse livro no período da faculdade, devorei, me senti estranha. Voltei a ler alguns aos depois, senti novamente o estranhamento. Ouvi dizer que na terceira vez é melhor.

Sexto livro, A trilogia Jogos Vorazes, Em Chamas e A Esperança, de Suzanne Collins. Outro golpe à vista, três em um! Do grupo das literaturas populares. Caiu nas graças dos adolescentes, virou filme e fez um enorme sucesso. A história se passa em um futuro distópico onde os Estados Unidos da América, após total destruição, se transforma em 12 distritos e 1 capital. Para manter um determinado controle e ausência de rebeliões, a capital cria os Jogos Vorazes. Anualmente, duas pessoas de cada distrito são sorteadas para participar desse reality show mortal. Todos são levados até uma arena montada tematicamente e lutam até a morte. Esses jogos se assemelham aos combates entre os gladiadores romanos. Por que eu gosto disso? Com toda a certeza a autora bebeu de fontes preciosas como 1984, de George Orwell. Toda a narrativa levanta questões políticas de manipulação midiática, totalitarismo, opressão, discurso de ódio, consumismo, desigualdade social e fascismo. Além disso tudo temos todo o drama da personagem que nos prende. Li os três livros seguidos, ainda lembro da sensação de entrar nesse universo distópico e caótico, do choro da personagem, dos barulhos das bombas, da raiva e de algumas alegrias, bem poucas alegrias.

Sétimo livro, Sociedade sem Lei, Pós-democracia, personalidade autoritária, idiotização e barbárie de Rubens R. R. Casara. Com pesar chego no sétimo e último livro. Foi uma escolha difícil. Existem ótimos concorrentes para essa posição, mas julguei necessário escolher esse livro por conta do momento em que estamos vivendo. Também precisamos olhar e estudar sobre o nosso contexto atual. Casara é juiz de direito no Tribunal de Justiça no Rio de Janeiro e em seu livro trata dos danos causados à sociedade pelo capitalismo e sistema neoliberal, onde o homem não é mais a medida de todas as coisas e sim o dinheiro - o homem não é coisa alguma. Nos fala de uma sociedade construída pela racionalidade neoliberal, que resulta em uma nova economia psíquica. Gerando assim pessoas sem limites e consequentemente uma sociedade sem limites. Leitura muito pertinente. Ainda não finalizei o livro, pois para compreender ou ampliar o conhecimento vou lendo em paralelo outros livros. Desse em específico fui para Psicologia das Multidões, de Gustave Le Bon, e voltei a ler Educação para Auschwitz, de Adorno. E assim, sem perceber, dou mais um golpe e indico outros dois.

O mundo da leitura é isso, transitar por vários mundos, aprender e reaprender. A leitura é também a amplitude do sensorial, é sentir uma época, um desejo, um sentimento, um aroma. É ouvir uma melodia que não está presente nos seus ouvidos. Aprender novas línguas, novos povos. É o encontro de novos olhares. É na leitura que muitos podem viver em nós. Ler é a principal ferramenta para a nossa educação, através da leitura amplio meu conhecimento, meu repertório. Passo a olhar o mundo como um sujeito crítico. Posso transformá-lo.

Talvez seja assim só pra mim e pra você seja de outra forma. Qual a sua forma?

Pois bem! Essa lista não tem muita coerência, está tudo misturado, tem um pouco de tudo que gosto e sei que desconheço um mundo de coisas que poderia vir a gostar. Uma vida não é suficiente para ler tudo que há para ser lido, mas uma certeza eu tenho: que sempre vou amar livros e sempre vou amar ler. Livro é tão bom que deveria ser declaração, tipo: eu te Livro!

 

Contos de Michelle Paim: 27 de abril de 2020

 

Cômodos Particulares

Meu marido Miguel e eu, fomos por anos diligentes na árdua tarefa de manter de pé o castelo de cartas que é a nossa relação. Casados há 10 anos, o isolamento social e nossa intensa convivência imposta pelo estado atual das coisas, vem como que para nos apresentar um ao outro novamente, se é que algum dia realmente chegamos a nos conhecer. Eu atriz, ele um escritor talentoso, nos conhecemos em uma livraria tradicional de São Paulo, optamos os dois pelo último exemplar de um livro que estava esgotado na editora, a saber: “A vida modo de usar”, excelente livro de Georges Perec, escritor francês. Muito gentil, ele me deu o livro de presente e brincou me dando seu telefone para que assim que terminasse de ler o livro, eu pudesse emprestar a ele. No mês seguinte nos casamos. Logo nas primeiras semanas notamos que era tudo mais complicado do que podíamos imaginar, eu na defensiva não querendo criar intimidade e ele que nunca pôde gostar de rotina. Fizemos então um acordo: todos os dias ele escreveria um roteiro com novas personagens que pudéssemos os dois interpretar para resolver nesse jogo as questões que afligiam nossa vida em comum. Todos os dias me levantava às 6 da manhã e pegava o roteiro preparado por Miguel, a descrição da minha personagem, dia após dia, sempre começava com “uma mulher muito bonita”, ele definitivamente sabe como agradar sua esposa. Tínhamos regras rígidas para desempenhar esse jogo que mantinha nossa união, por exemplo: cada um de nós tinha um cômodo onde o outro não poderia entrar, é muito difícil fingir ser algo que não se é em todos os minutos do tempo que nos é dado. Para sermos nós mesmos, seja lá o que isso signifique, tínhamos nossos trabalhos fora de casa e esses cômodos onde passávamos algumas horas isolados no dia. Nossa convivência em comum, no nosso jogo de representação, durava cerca de 4 horas por dia. Funcionava. Mas claro, nem tudo eram flores em nosso paraíso particular. Lá pelo quinto ano, comecei a querer escrever também, o motivo era que as personagens que ele me propunha sempre adoravam lavar a louça, algo muito distante da realidade, nem Fernanda Montenegro estando em meu lugar daria conta de fingir gostar disso dia após dia. O auge de nossa crise conjugal foi quando eu, escrevendo os roteiros, comecei definir os personagens de Miguel como sendo irmão ou “apenas um bom amigo” das minhas personagens, ele não gostou, claro. Depois tudo voltou ao normal, exceto por nosso cachorro que começou a entrar na brincadeira e em certos dias miava fingindo ser um gato, quando ele começou a pular médias alturas ficamos preocupados e o levamos ao psicólogo canino. Faz 6 meses que Pepe não mia. Com a pandemia, nosso jogo ficou inviável, muito tempo juntos na mesma casa, decidimos então dar uma trégua e sermos apenas nós mesmos, um diante do outro. Abri meu cômodo particular para Miguel que soube então que há anos tenho aprendido a fazer peças de cerâmica. Ele descobriu com surpresa também que não gosto de bebidas alcoólicas “- você parecia gostar de vinho, ele diz. “Fingi que gostava todas as vezes”, respondo. Pepe e eu rimos, Miguel não. Meu marido não tem tanto senso de humor, mas como é bonito! Das surpresas de nossa convivência transitando pela realidade, ele tirou do armário de seu cômodo secreto um violoncelo e toca agora todos os dias para mim. Miguel tem rido mais, disse que a pandemia atual me deu uma espécie de licença para ser louca, não posso deixar de sorrir. Hora após hora em nosso apartamento com a estante cheia de livros que não escrevi, olho pela janela que faz vista para as montanhas pelas quais nunca subi. Miguel toca em seu instrumento, não mais oculto para mim, a linda canção dos Beatles “Eleanor Rigby” cuja letra nos pede para olharmos para todas essas pessoas solitárias. Meu amado conhece bem a poesia da letra, mas não ousa cantarolar para não causar maiores traumas à mulher sensível que ele nunca conheceu. Espelhos um do outro, nos enxergando pela primeira vez.

Clarice: a barata

Os dias de confinamento têm me feito olhar para alguns seres com mais carinho e na falta de companhia humana, tenho conversado com eles. Poderia falar com meu cachorro, mas Pepe, por ser um representante da raça Bichòn Frisè, fala apenas francês, idioma que em parte por falta de tempo e em parte por ausência de vergonha na cara não domino. Providência divina ou não, outro dia entrou voando pela minha janela uma barata imensa e avermelhada. Quis seguir os meus instintos femininos mais profundos e gritar, mas me lembrei que agora só nos é permitido temer ao Covid e seus efeitos devastadores. Engoli meu medo olhei para a barata recém chegada pousada em meu braço e comecei a falar com ela. Em um português bem falado ela se apresentou como Clarice, seu nome é uma homenagem à Lispector, escritora de peso que deu certa moral às baratas em seu livro “A paixão segundo GH”. Clarice é muito culta e conhece vários lugares do mundo que existia antes da pandemia atual. Ela faz relatos, conta causos enquanto saboreia um torrão de açúcar oferecido por mim que tomo meu chá, sem açúcar. Me diz para ter serenidade, já que antes da crise eu era serena e em muitos aspectos estoica. Clarice diz que agora essas qualidades deveriam me servir de base, me cobra coerência. Me diz que palavras sem ação são monumentos de ar que o vento leva. Quanta admiração pelas baratas, Covid ou bomba atômica, elas sobreviverão! Clarice definitivamente não tem com que se preocupar. Vendo minha aflição, ela me diz para me acalmar, pois segundo meus próprios relatos, metade da minha família e amigos têm mania de limpeza e a outra morre de medo de morrer. - Estão todos lavando as mãos, Michelle. Não se inquiete”. Pepe só diz: - oui. “Vai passar - Clarice fala - tudo passa, só as baratas não passam”. Rimos os três.

 

Diário de Simone: 09 de abril de 2020.

 

Já não basta a dificuldade de acordar mulher todos os dias em nossa sociedade, agora temos de acordar mulher em meio a uma pandemia. Nossa rotina já é pesada, agora então, parece que Sísifo não está tão sozinho assim. Talvez você esteja me achando dramática — talvez eu seja mesmo — mas é bem provável que no fim dessas linhas você assuma que na verdade não iria querer trocar de pele comigo ou com qualquer outra mulher e, sendo bem sincera, a minha vida perto da vida de algumas mulheres que conheço é muito, muito tranquila e privilegiada.

              “Bom dia” me diz o celular e o meu primeiro pensamento é: estou aqui de novo, vamos lá! Preciso de um café. Minha casa não se recuperou da noite passada, eu não me recuperei da noite passada. Pia tem louça, sofá tem roupa, livros no sofá, no rack, no chão, a gata... A gata precisa de comida, mas antes deixa eu ver meu filho. Saio da cama e acalmo meu coração vendo sua respiração, ele ainda dorme. Verifico sua temperatura, não parece doente e eu recebo como mágica um golpe de energia para descer as escadas. Ignore a bagunça: você não vai dar conta mesmo! Preciso passar o aspirador quando voltar. Tempo curto, muitas coisas, preciso me arrumar... O café! Mas, antes, a gata! Sentada no sofá verifico os noticiários. Coronavírus e suas derivações, em minha cabeça muitas reflexões: como vamos fazer com as favelas? Como estão meus alunos? Céus! E os moradores em situação de rua? Teve festa na rua de baixo. Tem muitos funcionários doentes no hospital — você não sabe ainda, trabalho em hospital — tem muita gente nas ruas preciso passar no mercado tenho dois atendimentos hoje preciso escrever aquele texto esqueci de responder a mensagem do Carlos preciso ler aquele texto do Adorno e aquele outro da Arendt como eu odeio esse presidente! Nossa... olha a hora! 

 

Saio de casa, queria mesmo era ficar. Minha irmã está de home office, minha mãe sempre trabalhou em casa, minha sobrinha e meu filho estão com os estudos a distância — ainda bem! Coração segue menos aflito.

              — Tchau, Mãe!

              — Tchau, Simone!

              Sinto um pesar na sua despedida, é sempre assim. Ela teme e eu temo também, ambas fingimos que não. É próprio da mulher fingir que está tudo bem para poder continuar. Há de continuar, há de se manter. Muitas mulheres são assim, tivemos que nos construir dessa forma. Não é a primeira vez que saio de casa com medo, não é a primeira vez que minha mãe fica em casa com medo. Lidamos diariamente com ele, descansamos pouco do medo. As mulheres temem por suas vidas todos os dias e naturalizar isso também é um tipo de doença.

A chegada ao hospital é tensa: você já entra pensando em como se proteger, mas como? Se falta EPI? Não tem para todos. Vamos pensar nos que precisam mais! Quem precisa mais? Quem lida com os pacientes, claro! Certo, mas a contaminação já é comunitária, o que significa que os profissionais podem passar uns para os outros... Vamos de “uni duni tê”?

              Ao caminhar pelos corredores você se depara com diferentes profissionais, não é tão simples descobrir em qual setor aquele profissional trabalha ou de qual setor ele acabou de sair ou passar. O que ele estava fazendo antes de estar aqui? Pode estar infectado? O vírus não impôs apenas o distanciamento social, impôs uma sombra de desconfiança. Um vulto de doença em cada um que se aproxima. Nós mulheres também já estamos acostumadas com isso. Como você acha que é andar em uma rua escura e ouvir passos atrás de você ou quando você pede um carro por aplicativo? Até mesmo quando você vai conhecer alguém pela primeira vez, será que ele é um estuprador? O vulto da violência está em todos os homens até que se prove o contrário. Enfim, cruzo o primeiro corredor e nesse momento começo a sentir meu corpo um pouco mais rígido. Bem vinda, tensão! 

Ufa, cheguei segura ao meu setor... só que não! “Simone, tem aquele processo para entregar”. “Simone, fulano não veio”. “Simone, falta álcool”. “Simone, precisa ver a escala”. “O material para o paciente João não veio”. “O faturamento está atrasado”. "O Papa te ligou duas vezes”. “Cinderela! Cinderela! Cinderela...” Ops, volta! Desculpa, me empolguei. Lava as mãos primeiro e coloca sua máscara — é o que o bom senso diz e obedeço. Devido ao estado de pandemia adotamos algumas medidas protetivas, uma delas foi a redução do horário de trabalho. Lembro como se fosse ontem o apoio da chefia: “Até podemos reduzir, mas saiba que nada de errado pode acontecer, se não...". Nesses momentos, o acolhimento é o que conta, não acham? Afinal de contas, o que conta mesmo é a Mais-valia. A pandemia fez a gentileza de desvelar muitas coisas: ela desnudou tudo e todos, desde o sistema neoliberal e o quanto ele não se sustenta em toda sua mesquinharia até seu vizinho que limpou as prateleiras do supermercado. Não é mais necessário tanto esforço para ver quem as pessoas são. Foi mais ou menos como no período das eleições presidenciais, mas agora a rima é outra: vida X economia. Não, espere! A rima continua sendo a mesma: “Dinheiro: precisamos salvar. As vidas? Só se tempo sobrar!”

O setor em que trabalho é frequentado por muitos médicos. Vários desses profissionais estão bem cientes dos riscos que o novo vírus oferece, porém alguns estão confiantes que nada os atingirá e estão tão seguros que acreditam que também nada acontecerá com o restante da população, apesar de tratarem da população doente. Uma postura que me faz pensar como se deu esse processo um tanto alienante e alienador, tornando-os cada vez mais afastados de si mesmos e dos outros. Esses dias, trabalhando tranquilamente em minha sala, um dos residentes me procura para tirar uma dúvida, como faz de forma habitual. Se aproximou e muito de mim, o que não havia nenhuma necessidade, então pedi para que cumprisse o protocolo de distanciamento. Além de não ser atendida, fui surpreendida com um abraço forçado. Pois é! Ele me abraçou à força porque eu pedi para que ele respeitasse o protocolo que ele já deveria estar respeitando. A pandemia nos proporcionou uma nova modalidade de abuso: aquele que tenta te transmitir um vírus porque você reclamou do distanciamento — coitada da pandemia, não merece levar a culpa por estar de saia curta, nesse caso, por ele ser um abusador em potencial. Fui obrigada a empurrá-lo. Deveria ter feito mais, mas não fiz. Como a maioria dos homens, ele acredita que pode e está acostumado a poder e, pior, está acostumado a sair ileso de situações como essa porque nós mulheres, apesar de sabermos o que fazer na hora do abuso, de alguma forma, ficamos sem reação. Ele é médico, homem, classe média alta. Tudo isso conta muito no local onde trabalho. Qualquer reclamação que eu fizesse não daria em absolutamente em nada. Resolvi recolher minha cara e meu ódio do chão. Claro que eu sei que em uma escala de abusos esse não é dos piores, mas estamos falando aqui da violação da minha integridade, da minha vontade e do meu direito de não ser tocada — esse corpo aqui é meu, senhor! Hei! Hei! Hei! Do meu direito de ter minha saúde preservada. Mas, sabe o que é ainda pior? É termos uma escala para abusos. Pergunto-me se ele também abraça homens à força. Essa situação me fez lembrar do caso da médica Lorena Quaranta, que foi assassinada pelo enfermeiro e seu namorado Antonio De Pace. A justificativa de Antonio pela morte de Lorena foi ela ter passado o vírus covid-19 para ele. Ambos trabalhavam no mesmo hospital na Sicília, Itália. O mais suspeito é que os testes resultaram negativo para o vírus em ambos. Isso monstra como é fácil para os homens descontar sua raiva, seu descontentamento, sua ira sobre as mulheres. Como seu desiquilíbrio é direcionado para nós. Em contrapartida nós, mulheres, na grande maioria, adotamos uma postura de passividade frente aos homens. Somos culpadas pelas roupas que usamos, pelo horário em que saímos, se bebemos, se lutamos. A verdade é que nos culpam porque somos mulheres.

Hora de voltar pra casa, acabou... a metade do dia.

              Chegar em casa, deixar tudo no carro: tire os sapatos dentro do veículo, vá direto para a lavanderia, lave bem as mãos, tire as roupas e coloque-as em um saco, passe álcool em gel, vá direto para o chuveiro e não toque em nada!

              Em minha casa tenho 3 pessoas do grupo de risco: minha irmã finalizou recentemente o tratamento de câncer de mama, é hipertensa e diabética. Minha sobrinha é imunodeficiente, não produz anticorpos suficientes. Minha mãe tem 65 e possui habilidades de subir em telhados. Banho... Tento liberar a musculatura, começo a listar as tarefas mentalmente. Tensão, não foi embora ainda?

              Morta de fome. Vou comer qualquer coisa, bom senso não deixa. Precisamos reforçar a imunidade. Cozinha, lava, seca, guarda, limpa, aspira, respira, não pira. Tem cerveja? Não tem, só vinho. Serve? Não posso, vou atender — vocês não sabem, mas também sou terapeuta, segunda profissão. Para nós, mulheres, é muito comum o acúmulo de atividades. Historicamente muitas coisas são colocadas nos nossos ombros: casa, filhos, maridos, trabalhos — alguns até são remunerados, mal remunerados. Lembrei da Dona Cleonice, a empregada doméstica, uma das primeiras vítimas do Coronavírus no Rio de Janeiro. Contraiu o vírus na casa onde trabalhava de segunda a sexta. Sua empregadora retornou infectada da Itália e achou que era certo não dispensar seus empregados. Dona Cleonice era hipertensa e diabética. Seu nome não foi mencionado nas primeiras reportagens, era tratada apenas como "doméstica". Em uma sociedade que nos separa por classes e por objetos a serem usados, o que basta mesmo é saber quanto você vale. E uma empregada doméstica? Vale quanto? Seu nome era CLEONICE GONÇALVES, tinha 63 anos.

Os atendimentos estão girando em torno da pandemia, todos estão girando em torno da pandemia. Ela nos consome e nós a consumimos, mas não tenho tempo de ser consumida: preciso verificar as lições do filho.

              — Como foi a aula, Murilo?

              — Bem, mãe!

              — Fez as atividades?

              — Sim mãe, você fez comigo. Esqueceu?

              — Sim filho, esqueci! 

              Descansar. Vou ler, vou escrever aquele texto, vou planejar aquele grupo, responder aquela mensagem, quer um suco, filho? Vou ver um filme, nossa... olha a hora!

“Bom dia”, me diz o celular e o meu primeiro pensamento é: estou aqui de novo, vamos lá! Preciso de um café.

Diário das Irmãs Fátima e Aparecida: 08 de abril de 2020.

Estamos mantendo o trabalho na secretaria, auxiliando, enviando informações das crianças e familiares para os parceiros fazerem doações e aproveitando o tempo para organizar os documentos. Estamos também acompanhando as informações. Rezando. Em nossas orações, temos refletido muito.

O que Deus está falando para nós a partir dessa realidade?

Que atitude devo ter para ser solidária com meus irmãos e irmãs?

Que comportamento devo ter para respeitar e evitar a transmissão dessa pandemia?

O que tudo isso nos levar a refletir e mudar de comportamento?

Diante de um mundo com tanta violência, ausência de humanização, indiferenças e corrupção?

O mundo parou, muitas famílias já perderam seus entes queridos, alguns estão em pânico, outros indiferentes. Igrejas com portas fechadas, famílias convidadas a estar em isolamento social. São muitas realidades para refletir e rezar.

Eu e Irmã Aparecida estamos refletindo sobre tudo isso, olhando para dentro de nós mesmas, analisando e contextualizado toda essa realidade e nos perguntando... que atitude deve nos mover agora no presente, durante e depois, se sobrevivermos a essa epidemia? Estamos confiantes, ansiosas, conscientes e com esperanças fortalecidas, mesmos com as nossas fragilidades, buscando respostas para os questionamentos.

Trabalhamos, brincamos, partilhamos e rezamos. Sendo assim, o dia fica bem mais leve e passa rápido.

Mas escutamos relatos de pessoas deprimidas, angustiadas e de mulheres que estão sendo violentadas pelos os companheiros e isso é muito triste...