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E a poesia transbordou...

Os relatos do cotidiano das mulheres durante a pandemia de coronavírus transbordaram poesia. Assim, iniciamos um cantinho poético na parceria Espaço Monica Aiub e Editora FiloCZar.

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Mãe faz o quê? - Mitze Rodrigues

Puta que pariu.

Derrubar o sistema

Esse é o lema.

Mas que caminho tomar,

Quando nem dentro de casa as rédeas se pode tomar.

 

Por favor faz isso aqui,

Olha as crianças ali.

Sai do sofá e lava essa louça

Que na máquina eu vou colocar a roupa.

 

Mulher eu trabalho a semana toda

Eu to cansado

Seus filhos estão chorando.

E você só vive reclamando.

 

Que porra macho,

Seus filhos tem babá?

Sua roupa quem é que lava?

E a droga da tua marmita?

Foi fantasma que fez?

Nem o recipiente tu lava

Que desculpa você vai usar dessa vez?

 

Um dia eu vou cansar,

E quando eu sair não adianta correr atrás.

 

Se sair como que vai cuidar dos teus filhos,

Se sou eu que trago o zimbo pra dentro dessa casa?

 

Você me magoa e não vê.

Aliás será que me enxerga?

Será que minhas lágrimas pode enxugar?

 

Silêncio,

Silêncio..

Tem criança gritando

Tem criança chorando

E nós aqui brigando.

 

Eu vou fazer porque com você falar não serve.

Você acha que eu sou tua serva?

Eu preciso gritar pra me ouvir

A vontade que tenho é de fugir.

 

Família, porra de família.

Fizemos juntos.

Mas filho é de quem mesmo?

Amamentar, restrição de sono, criança doente.

 

Se vira mulher.

Amanhã tenho que trabalhar

E minha marmita pronta tem que estar.

Tá ruim pra você? Trabalha fora pra você ver.

Fica em casa e NÃO FAZ NADA.

Caralho mulher, chego em casa e só tem cobrança,

Aonde foi que firmei minha aliança?

 

Mano eu cansei,

Não te falo mais nada.

Dos MEUS filhos vou cuidar

E um dia você vai sentir na pele sua omissão paterna.

Enquanto isso eu vou lutar

Esperando o tempo passar.

 

Filho é de mãe.

Desde sempre.

Se mãe trabalhasse fora

Dos filhos em casa também cuidaria.

Ser mãe não dá ferias.

Mãe pelos filhos morreria.

Mãe morre, mesmo sorrindo.

Mãe morre quando deixa de ser mulher.

Mãe morre quando não é ouvida.

Mãe morre quando com a dor ela lida.

 

De quem é esse filho aqui?

 

Milhares de famílias se encontram nessa condição. Mulheres são silenciadas no mundo, mas sobretudo dentro de casa, colocadas ao papel de submissas, vistas como papel social obrigatório de maternagem. Se tem mãe pra fazer por que o homem precisa fazer?

É um jogo de poder e persuasão baseado no EU TRABALHO, e VOCÊ NÃO.

E a mulher se submete, sua prioridade é manter seus filhos bem, custe o que custar, mesmo que seja sua felicidade. O sistema ensina isso pra gente. O sistema que está preso nas paredes da nossa casa, nos incentiva a abaixar a cabeça, a pensar nas necessidades, a pensar no perdão que autodestrói. A insistir no que nos machuca.. em nome do que? Do amor? Que amor é esse?

 

Escombros Lu Ederlezi

Eu olho pra baixo meu amor,

Um abismo

Olho pra cima

Os destroços da minha alma

Mas olha meu amor: ainda brilha!

Desajeitada nas minhas roupas de dormir

E eu que ainda nem dormi...

Eu só sei fazer planos e planos a noite toda

Respiro e seguro o ar nos pulmões

E agradeço a algum Deus que esteja passando estar respirando

Aqui nos escombros

Respirar é um luxo

Queria poder beijar seus lábios num desses suspiros em que escapo

Tristeza e desejo num beijo desesperado

Eu não vou morrer!

Eu quero o direito de viver um amor cheio de defeitos

Quero discutir por besteiras

E depois fazer as pazes

Quero dividir o doce do pote

Contar o que sobrou do nosso dinheiro pra ir ao cinema

Eu fico acompanhando as notícias meu amor

Quero levar Malu pra ver o mar com você

Tirar o cochilo da tarde na rede

Ver o nascer do Sol

Ver o pôr do sol

Fazer o café da manhã te esperando trazer pão quentinho da padaria

Amor, quero ver seus defeitos e ainda assim sentir que não há nada de errado com você

Quero ficar em silêncio pelos mortos segurando a sua mão

Deixar a lágrima rolar

Um dia vamos, nós também, amor, mas espere!

Ainda não fomos defeituosamente felizes, temos esse direito

Te espero aqui nos escombros, meu amor, até logo.

Deus - Lu Ederlezi

Que Deusa sou eu?

Que Deusa me criou?

Será que não sou ninguém?

Mas que ninguém eu sou?

E se sou ninguém que Deus me extinguiu?

Que Deus me ignora?

Eu ignoro algum Deus?

Eu não tive a intenção

Que Deus é o seu?

É melhor que o meu?

Me empresta seu Deus?

Ele existe e você é ninguém?

Ou Ele não existe e você é alguém?

Ele também te abandonou?

Se está com você me leva junto?

Me deixa ficar com vocês?

Será que estou enlouquecendo?

Ou só fazendo poesia pra algum Deus?

Que Deus?

Flores na Janela - Zuleide Mendes

A cena que hoje me impactou foi uma mulher plantando flores na janela

O que importa se vamos adiar em um ano projetos que fizemos e que nem eram nosso

O que importa se o ano letivo ficou prejudicado, o vestibular adiado, o mestrado não acabado, o trabalho modificado

A Rainha Economia perdeu seu trono para o vírus que viria

Vírus que é de morte, que é forte, espelho refletor de nossa ausência

Nessa ingerência, há muito os mares choram suas perdas, as florestas deixaram de encantar e os animais perderam o seu morar, mas nada serviu para nos alertar

Os vírus souberam que aqui podiam procriar, pois era casa desprotegida, era casa sem dono, sem a força da igualdade

Onde poderiam usurpar o trono e saquear a liberdade.

As nossas cidades já estavam vazias de humanidade, as praças já estavam secas de sombras frescas

Pessoas já estavam famintas, desabrigadas e feridas de solidão, de falta de irmão

O vírus veio para assustar, mas não vai ficar, veio só alertar

Para alguns vai deixar herança amarga na lembrança dos que ficarão na memória

Pode ser professor dos que viverão, mas para muitos será apenas história

Quem sabe se com esse momento de sobressalto consigamos descer do salto

Restabelecer o amor que libera o ser

Entender a sabedoria do retroceder

E com esse fenômeno imaginar, não como quimera

Que é possível crescer e, ainda assim, ter flores na janela.

Relojoeiro - Lunna Lince

Estão me tirando tudo!

Mas o que era meu mesmo?

Alguma coisa é da gente nesse mundo?

As ruas, as praças, o canto dos pássaros

O caminhar até a padaria, sentir o cheiro do café de balcão.

Eram minhas essas coisas?

Quando eu sentia que meu esforço tinha uma finalidade.

Era bom.

Tinha finalidade?

Quando terá fim?

A filosofia me deixou triste, porém lúcida.

A religião me deixou feliz por uns dia, porém tosca.

Poucos são os que me entendem ou fingem emtender

Eu sou lucida?

Você é?

Minha filha é minha?

Eu sou filha ainda?

Nada mais é meu e se foi era provisório.

Já não tenho a minha mesa favorita no canto da padaria

O lugar de sempre

Para ler Neruda e pedir mais um café pra não perder a estrofe

O livro nem era meu

Era do dono da loja de relógios antigos que também está fechada

O seu bom dia eu não tenho mais.

Seu livro ainda está comigo.

Ainda o devolverei?

Esteja vivo relojoeiro quero minha vida de volta.

Cavalos Selvagens na Praia - Lu Ederlezi

Quando você vai sozinho na beira do mar

seu espírito revolta as ondas

Um elemento

Uma energia

Uma solidão cheia de tanta coisa!

Estou dentro da solitude de seus pensamentos?

Questões se formam em sua mente

E as energias ancestrais descendem dessa agonia

Você não sabe se é devaneio mas surge uma manada de corcéis negros da cor de seu cabelo.

Velozes, começam a correr entre você e o mar, por dentro de você. Alguns brincam, outros estão furiosos, outros com um olhar sereno tocam o focinho no seu rosto.

Vem um deles, o mais forte e mais brilhante de todos pega você a galope, rápido,implacável, percorre o vento do mar, por entre cascata de ondas...

Você gruda em suas crinas e grita, grita o mais alto que pode!

Sorrindo feito menino.... e o alivio, a paz se instalam no seu coração.

Seus pensamentos selvagens, os verdadeiros sentimentos, seus cavalos e sua mente... as ondas recuam.

Sozinho na praia e eles se foram, por enquanto.

Respire agora.

Estou aqui.

Libélula - Lu Ederlezi

Meu amor,

Veja só que triste...

A libélula azul nunca mais pousou na minha janela!

Eu não sei porquê mas sinto que isso não é um bom presságio.

Mesmo você não sendo a pessoa certa pra eu contar essas minhas coisas.

A alma te escolhe, mais forte do que a consciência.

A teimosia do meu coração quer te contar das coisas que estão derretendo 

Das que estão desbotando 

Flores sem água

Vasos sem plantas

Bocas sem beijos

Braços sem abraços

A paixão perdida por aí, na luz da lua, sozinha sem corações abertos pra entrar.

Eu quero te falar e falar para que doa. Dói sim.

Vai doer em você e eu sou cruel por isso quero te dar esse poema para você chorar, para doer em você também.

Eu quero te falar que o sol brilha, mas é só lá fora.

Eu quero te falar que você não é amor da minha vida, só quando eu quero que seja.

Eu que te falar que a libélula é sua alma, é você, covarde ou preso, tanto faz.

Eu quero por a culpa em você, das noites sem amor que passei chorando.

Dizer que você é o Sol que se esconde atrás das nuvens.

Que o nosso amor são as tintas derretidas, a cores desbotadas, eu sou a flor sem água e o vaso vazio é você.

Vazo vazio, sem terra que não soube me florescer. 

Vi´ja - Lu Ederlezi

A flor da pele de qualquer poesia, a dor é o mais simples fruto dos exílios.

Agora daqui, já não sinto aquela mesma magia. 

A ponta do dedo do destino também, quem sabe, não se confundiria?

É linda a chuva. Mas quando ela vai parar? 

Eu só preciso de um minuto na rua, e eu vou correr para encontrar um atalho nessa vida que com a espada que corte tudo o que há de ruim. 

E se depois de tudo passar, mesmo assim, cairmos juntos na mesma harmonia,

que a tempestade nos surpreenda, ainda resta um banho de chuva para lavar a alma.